A MP579 das estradas

Prof. Andriei José Beber, Dr. (andriei@andrieibeber.com.br)

Prof. Diogo Mac Cord de Faria (diogo.mcfaria@gmail.com)

Heráclito, conhecido como o “pai da dialética”, afirma que ninguém se banha duas vezes no mesmo rio: no instante em que se entra nele, águas novas imediatamente substituirão aquelas nas quais a pessoa imergiu. Para ele, “nada é permanente, exceto a mudança”. Nos últimos dias, o governo federal anunciou sua intenção de conceder, por 10 anos, até 45% das estradas atualmente administradas pelo DNIT a operadores que se encarregariam apenas dos custos de operação e manutenção (OPEX) das pistas. A cobertura desses custos viria mediante cobrança de pedágio, significativamente mais baratos uma vez que não se destinam a cobrir custos de investimento (CAPEX). O plano prevê que a concessionária que assumir o trecho receba uma receita fixa pelos serviços prestados, independentemente do tráfego de veículos na estrada. Dessa forma, o governo pretende garantir um retorno fixo ao empreendedor. Ainda, como veiculado na mídia (sic), “semelhantemente ao que já acontece no setor elétrico, o plano avalia a criação de um tipo de câmara de compensação financeira para garantir os pagamentos aos concessionários. Trechos concedidos que eventualmente arrecadarem mais com o fluxo de pedágios, ajudarão a bancar o pagamento de outros que arrecadarem menos”.

Muitos pontos, porém, preocupam neste plano, sendo o mais evidente sua semelhança com a Medida Provisória 579/2012 ⎯ aquela que baixou as contas de luz em 20%. Seu vício de origem reside na premissa de que concessões de projetos intensivos em capital podem ser equilibradas meramente com a cobertura dos custos de operação e manutenção. Considere uma rodovia (ou qualquer outro equipamento de infraestrutura) que custe bilhões para ser construída. Dada sua magnitude, este ativo tem, nos custos anuais de amortização do capital investido, uma demanda por recursos muito superior aos custos de sua operação e manutenção. Quando o investidor calcula a taxa mínima de retorno exigida para um projeto, ele considera, a grosso modo, uma taxa livre de riscos mais um prêmio por investir neste projeto, ou seja, por ter que administrar aquele negócio. Os riscos, inerentes ao setor, são precificados a partir da observação de empreendimentos similares.

De modo simplificado, o investidor demanda uma recompensa adicional (um “colchão” de proteção) por assumir este risco. No entanto, mesmo que este risco seja devidamente precificado, isso não significa que o operador vai colocar este dinheiro no bolso. Tudo que é arriscado pode, às vezes, dar errado. A materialização destes riscos pode corroer parcial ou totalmente este “colchão”, não sendo improvável que seu impacto venha a exceder o valor de vários anos de remuneração. Portanto, este “colchão” deve ser muito bem dimensionado. Para uma concessão, a pior coisa que pode ocorrer é um evento tão significativo que avance sobre os recursos de manutenção e operação ou, no limite, sobre o pagamento do capital de terceiros – os financiamentos – conduzindo o empreendimento, invariavelmente, à insolvência.

Por outro lado, é imprescindível reconhecer que o risco de construção é nevrálgico e, projetos em operação (ou brownfield), já possuem essa parcela mitigada. Outrossim, quando o investidor é o responsável pela própria obra, a qualidade da construção pode traduzir-se como alternativa para a redução nos custos de operação (e eventuais surpresas) ao longo do período de concessão. Ao assumir rodovias construídas pelo DNIT, muitas sem a menor condição de rodagem, é muito difícil assumir o risco de operação, sem ter associada uma margem que seja proporcional ao investimento de capital integral da rodovia.

Voltando ao exemplo da MP579 do setor elétrico: o governo achou que era possível fazer isso. Calculou quanto deveria ser o custo operacional “regulatório” (uma conta malfeita, pela média do mercado) e ofereceu uma remuneração de 10% sobre este valor. Na época, afirmou-se que era um ótimo negócio aos operadores, uma vez que 10% era maior do que o custo médio ponderado de capital, ou WACC regulatório, então vigente – duas dimensões que jamais poderiam ser comparadas. Deliberadamente, ignorou que os custos de capital (principal mais remuneração) em hidrelétricas deste perfil são, em média, sete vezes maiores que os custos operacionais – ou seja, 10% sobre o custo de operação e manutenção é um colchão muito pequeno pelo risco assumido. Ignorou, ainda, que menos de 6% das hidrelétricas renovadas tinham uma variação de custo operacional de um ano para outro inferior aos 10% da remuneração, ou seja, mesmo sendo um negócio já em fase de operação, teoricamente bastante previsível, 94% das plantas tinham oscilações naturais deste custo superiores a 10% de um ano para outro.

No caso das rodovias, isso pode ser exemplificado pela variação no custo do asfalto. Fatalmente, a solução passará por uma regulação tarifária pelo custo que, somado à ideia de um “caixa único” onde as superavitárias passam as “sobras de caixa” às deficitárias, resultará na já conhecida falência do setor elétrico pré-reforma de 1995/96. A ineficiência desse modelo não é privilégio do Brasil. Em 1999, o governo de Victoria, Austrália, privatizou os trens urbanos de Melbourne, em um modelo onde o operador receberia apenas pelos custos operacionais, e qualquer melhoria caberia ao Estado. Ao longo dos anos, o investimento nunca veio . Gradualmente, face ao sucateamento da infraestrutura, os custos de operação se elevaram e 3 das 5 concessões faliram em 2002. As duas que sobraram precisaram absorver as demais, e chegaram ao final de 2009 (quando o contrato venceu) com péssimas avaliações de qualidade por parte dos usuários.